- CUIDAR ATÉ AO FIM COM
COMPAIXÃO
Representantes de comunidades cristãs,
muçulmanas, judaicas, hindus e budistas, presentes em Portugal, assinaram uma
declaração conjunta em que rejeitam a legalização da eutanásia no país, prática
que coloca em causa o respeito pela vida
DECLARAÇÃO CONJUNTA
O debate em curso na sociedade portuguesa sobre a realidade a que
se tem chamado “morte assistida” convoca todos a realizarem uma reflexão e a
oferecerem o seu contributo para enriquecer um processo de diálogo que
necessita da intervenção da pluralidade dos actores sociais. As Tradições
religiosas são portadoras de uma mensagem sobre a vida e a morte do homem, bem
como sobre o modelo de sociedade que constituímos, e é legítimo e necessário
que a apresentem, com humildade e liberdade.
Agora que a Assembleia da República vai discutir e colocar em
votação propostas de uma eventual lei sobre a eutanásia, nós, as comunidades
religiosas presentes em Portugal signatárias, conscientes de que vivemos um
momento de grande importância para o nosso presente e o nosso futuro colectivo,
declaramos:
1.
A
dignidade daquele que sofre
Acreditamos que cada ser humano é único e, como tal,
insubstituível e necessário à sociedade de que faz parte, sujeito de uma
dignidade intrínseca anterior a todo e qualquer critério de qualidade de vida e
de utilidade, até à morte natural. A vida não só não perde dignidade quando se
aproxima do seu termo, como a particular vulnerabilidade de que se reveste
nesta etapa é, antes, um título de especial dignidade que pede proximidade e
cuidado. Assumimos que todo o sofrimento evitável deve ser evitado e, por isso,
estamos gratos porque o desenvolvimento das ciências médicas e farmacológicas
alcançou um tal patamar de desenvolvimento que permite o eficaz alívio da dor e
a promoção do bem-estar. Contudo, não ignoramos o carácter dramático do
sofrimento e a dificuldade de que se reveste a elaboração de um sentido para o
viver. Sabemos que a religião oferece uma possibilidade de sentido a quem
acredita, mas sabemos também, pela experiência do acompanhamento de tantos que
não são religiosos, que não depende de o ser a possibilidade de encontrar
sentido para o próprio sofrimento. Com esses aprendemos, aliás, que nesta
tarefa reside uma das maiores realizações da dignidade pessoal. A dignidade da
pessoa não depende senão do facto da sua existência como sujeito humano e a
autonomia pessoal não pode ser esvaziada do seu significado social.
2.
Por
uma sociedade misericordiosa e compassiva
O sofrimento do fim de vida é, para cada pessoa, um desafio
espiritual e, para a sociedade, um desafio ético. Comuns às diferentes
Tradições religiosas, princípios como a misericórdia e a compaixão
configuraram, ao longo da história da civilização, modelos sociais capazes de
criar, em cada momento, modos precisos de acompanhar e cuidar os membros mais
frágeis da sociedade. Hoje, o morrer humano é um dos âmbitos em que este
desafio nos interpela. O que nos é pedido não é que desistamos daqueles que
vivem o período terminal da vida, oferecendo-lhes a possibilidade legal da
opção pela morte, à qual pode conduzir a experiência do sofrimento sem cuidados
adequados. Esse é o verdadeiro sofrimento intolerável, que cria condições para
o desejo de morrer. Nasce de uma sociedade que abandona, que se desumaniza, que
se torna indiferente. Confirma-nos nesta convicção a experiência de que quem se
sente acompanhado não desespera perante a morte e não pede para morrer. O que
nos é pedido é, pois, que nos comprometamos mais profundamente com os que vivem
esta etapa, assumindo a exigência de lhes oferecer a possibilidade de uma morte
humanamente acompanhada.
3.
Os
Cuidados Paliativos, uma exigência inadiável
Acreditamos que os cuidados paliativos são a concretização mais
completa desta resposta que o Estado não pode deixar de dar, porque aliam a
maior competência científica e técnica com a competência na compaixão, ambas
imprescindíveis para cuidar de quem atravessa a fase final da vida. A
verdadeira compaixão não é insistir em tratamentos fúteis, na tentativa de
prolongar a vida, mas ajudar a pessoa a viver o mais humanamente possível a
própria morte, respeitando a naturalidade desta. Os cuidados paliativos
fazem-no, valorizando a pessoa até ao seu fim natural, aliviando o seu
sofrimento e combatendo a solidão pela presença da família e de outros que lhe
sejam significativos. Interpelamos a sociedade portuguesa para corresponder à
exigência não mais adiável de estender a todos o acesso aos cuidados paliativos
e assumimos a disponibilidade e a vontade de fazermos tudo o que esteja ao
nosso alcance para participar neste verdadeiro desígnio nacional. E não podemos
deixar de interrogar se a presente discussão, antes de realizado este
investimento, não enfermará de falta de propósito.
As Tradições religiosas professam que a vida é um dom precioso e,
para as religiões abraâmicas, um dom de Deus e, como tal, se reveste de
carácter sagrado; mas este apenas confirma a sua dignidade natural, da qual
derivam a sua inviolabilidade e indisponibilidade intrínsecas, que, portanto,
não dependem da fundamentação religiosa. Mas a religião confere à vida um
sentido, uma esperança, uma outra possibilidade de transcendência. As
sociedades precisam desta visão do humano ao lado de todas as outras.
Nós, comunidades religiosas presentes em Portugal, acreditamos que
a vida humana é inviolável até à morte natural e perfilhamos um modelo
compassivo de sociedade e, por estas razões, em nome da humanidade e do futuro
da comunidade humana, causa da religião, nos sentimos chamados a intervir no
presente debate sobre a morte assistida, manifestando a nossa oposição à sua
legalização em qualquer das suas formas, seja o suicídio assistido, seja a
eutanásia.
Por isso assinamos em conjunto a presente Declaração.
Lisboa, 16 de maio de 2018